Trabalho apresentado no XIII Congresso Mundial de Criminologia,
10-15 Agosto de 2003, Rio de Janeiro.
A justiça restaurativa é uma nova maneira de abordar a justiça penal, que enfoca a reparação dos danos causados às pessoas e relacionamentos, ao invés de punir os transgressores. Tendo se originado nos anos 70 como uma mediação entre vítimas e transgressores, nos anos 90 a justiça restaurativa foi ampliada para incluir comunidades de assistência, com as famílias e amigos das vítimas e transgressores participando de processos colaborativos denominados “conferências” e “círculos”. Este novo enfoque na resolução de conflitos e o conseqüente fortalecimento daqueles afetados por uma transgressão parecem ter o potencial de aumentar a coesão social nas nossas sociedades, cada vez mais distantes umas das outras. A justiça restaurativa e suas práticas emergentes constituem uma nova e promissora área de estudo das ciências sociais.
Nesse trabalho propomos uma teoria conceptual de justiça restaurativa para que os cientistas sociais possam por à prova estes conceitos teóricos e sua validade na explicação e prognóstico das práticas de justiça restaurativa. O postulado fundamental da justiça restaurativa é que o crime causa danos às pessoas e relacionamentos e que a justiça exige que o dano seja reduzido ao mínimo possível. Dessa premissa resultam as seguintes questões chave: Quem foi prejudicado? Quais as suas necessidades? Como atender a essas necessidades?
UMA TEORIA CONCEPTUAL DE JUSTIÇA RESTAURATIVA
A justiça restaurativa é um processo colaborativo que envolve aqueles afetados mais diretamente por um crime, chamados de “partes interessadas principais”, para determinar qual a melhor forma de reparar o dano causado pela transgressão. Mas quem são as principais partes interessadas na justiça restaurativa e como devem se comprometer na busca pela justiça? Nossa proposta teoria de justiça restaurativa é composta de três estruturas conceituais distintas, porém relacionadas: Social Discipline Window - A Janela de Disciplina Social (Wachtel 1997, 2000; Wachtel & McCold 2000), Stakeholder Roles - O Papel das Partes Interessadas (McCold 1996, 2000) e Restorative Practices Typology - A Tipologia das Práticas Restaurativas (McCold 2000; McCold & Wachtel, 2002). Cada uma dessas explica o como, o por quê e o quem da teoria de justiça restaurativa.
A Janela de Disciplina Social
Figura 1. Janela de Disciplina Social
|
Todos aqueles que têm um cargo de autoridade na sociedade precisam tomar decisões sobre como manter a disciplina social: pais criando filhos, professores em salas de aula, empregadores supervisionando empregados ou profissionais da justiça respondendo a transgressões penais. Até pouco tempo, as sociedades ocidentais vinham utilizando punições, normalmente vistas como a única forma eficiente de disciplinar aqueles que se comportavam mal ou cometiam crimes.
Punição e outras opções estão ilustradas na Janela de Disciplina Social (Figura 1), que é criada pela combinação de dois continuums: “controle”, que limita ou influencia os outros, e “apoio”, cuidando, encorajando ou assistindo outros. Para simplificar, as combinações de cada um desses continuums foram limitadas a “alto” e “baixo”. A delimitação clara de limites e a imposição diligente de padrões de comportamento caracterizam um alto grau de controle social. Padrões vagos ou fracos de comportamento e regulamentos permissivos ou inexistentes caracterizam um baixo controle social. A assistência ativa e preocupação pelo bem-estar coletivo caracterizam o alto apoio social. A falta de encorajamento e uma provisão mínima para necessidades físicas e emocionais caracterizam o baixo apoio social. Combinando um nível alto ou baixo de controle com um nível alto ou baixo de apoio, a Janela de Disciplina Social define quatro abordagens à regulamentação do comportamento: punitiva, permissiva, negligente e restaurativa.
A abordagem punitiva, com alto controle e baixo apoio, também chamada de “retributiva”, tende a estigmatizar as pessoas rotulando-as indelevelmente de forma negativa. A abordagem permissiva, com baixo controle e alto apoio, também chamada “reabilitadora”, tende a proteger as pessoas das conseqüências de suas ações erradas. Baixo controle e baixo apoio são simplesmente negligentes, uma abordagem caracterizada pela indiferença e passividade.
A abordagem restaurativa, com alto controle e alto apoio, confronta e desaprova as transgressões enquanto afirmando o valor intrínseco do transgressor. A essência da justiça restaurativa é a resolução de problemas de forma colaborativa. Práticas restaurativas proporcionam, àqueles que foram prejudicados por um incidente, a oportunidade de reunião para expressar seus sentimentos, descrever como foram afetados e desenvolver um plano para reparar os danos ou evitar que aconteça de novo. A abordagem restaurativa é reintegradora e permite que o transgressor repare danos e não seja mais visto como tal.
Quatro palavras descrevem resumidamente as abordagens: NADA, PELO, AO e COM. Se negligente, NADA faz em resposta a uma transgressão. Se permissiva, tudo faz PELO (por o) transgressor, pedindo pouco em troca e criando desculpas para as transgressões. Se punitiva, as respostas são reações AO transgressor, punindo e reprovando, mas permitindo pouco envolvimento ponderado e ativo do mesmo. Se restaurativa, o transgressor encontra-se envolvido COM o transgressor e outras pessoas prejudicadas, encorajando um envolvimento consciente e ativo do transgressor, convidando outros lesados pela transgressão a participarem diretamente do processo de reparação e prestação de contas. O engajamento cooperativo é elemento essencial da justiça restaurativa.
O Papel das Partes Interessadas
Figura 2. Papéis das Partes Interessadas
|
A segunda estrutura de nossa teoria de justiça restaurativa, o papel das partes interessadas (Figura 2), relaciona o dano causado pela transgressão às necessidades específicas de cada parte interessada resultantes da mesma, e às respostas restaurativas necessárias ao atendimento destas necessidades. Essa estrutura causal distingue os interesses das partes interessadas principais—aqueles mais afetados pela transgressão—dos afetados indiretamente.
As partes interessadas principais são principalmente constituídas pelas vítimas e os transgressores porque são os mais diretamente afetados. No entanto, aqueles que têm uma relação emocional significativa com uma vítima ou transgressor, como os pais, esposos, irmãos, amigos, professores ou colegas, também são considerados diretamente afetados. Eles constituem as comunidades de assistência a vítimas e transgressores. O dano causado, as necessidades criadas e as atitudes restaurativas das partes interessadas principais são próprias de cada transgressão e precisam de participação ativa da comunidade para alcançar reparação máxima.
As partes interessadas secundárias (indiretas) incluem os vizinhos, aqueles que pertencem a organizações religiosas, educacionais, sociais ou empresas cujas áreas de responsabilidade incluem os lugares ou as pessoas afetadas pela transgressão. A sociedade como um todo, representada pelo governo, também é uma parte interessada secundária. O dano causado às duas partes interessadas secundárias é indireto e impessoal, suas necessidades são coletivas, não específicas, e sua resposta máxima é apoiar os processos restaurativos como um todo.
Todas partes interessadas principais precisam de uma oportunidade para expressar seus sentimentos e ter uma voz ativa no processo de reparação do dano. As vítimas são prejudicadas pela falta de controle que sentem em conseqüência da transgressão. Elas precisam readquirir seu sentimento de poder pessoal. Esse fortalecimento é o que transforma as vítimas em sobreviventes. Os transgressores prejudicam seu relacionamento com suas comunidades de assistência ao trair a confiança das mesmas. Para recriar essa confiança eles devem ser fortalecidos para poderem assumir responsabilidade por suas más ações. Suas comunidades de assistência preenchem suas necessidades garantindo que algo será feito sobre o incidente, que tomarão conhecimento do ato errado, que serão tomadas medidas para coibir novas transgressões e que vítimas e transgressores serão reintegrados às suas comunidades.
As partes interessadas secundárias, que não estão ligadas emocionalmente às vítimas e transgressores, não devem tomar para si o conflito daqueles a quem pertence, interferindo na oportunidade de reconciliação e reparação. A resposta restaurativa máxima para as partes interessadas secundárias deve ser a de apoiar e facilitar os processos em que as próprias partes interessadas principais determinam o que deve ser feito. Estes processos reintegrarão vítimas e transgressores, fortalecendo a comunidade, aumentando a coesão e fortalecendo e ampliando a capacidade dos cidadãos de solucionar seus próprios problemas.
Tipologia das Práticas Restaurativas
Figura 3. Tipologia das Práticas Restaurativas
|
A justiça restaurativa é um processo que envolve as partes interessadas principais na decisão de como reparar o dano causado por uma transgressão. As três partes interessadas principais na justiça restaurativa são as vítimas, os transgressores e suas comunidades de assistência, cujas necessidades são, respectivamente: obter a reparação, assumir a responsabilidade e conseguir a reconciliação. O grau de envolvimento das três numa troca emocional e decisões significativas determinará o grau em que qualquer forma de disciplina social poderá ser chamada apropriadamente de “restaurativa”. Esses três grupos de partes interessadas principais são representados pelos três círculos da Figura 3. O próprio processo de interação é crítico para preencher as necessidades emocionais das partes interessadas. O compartilhamento de emoções necessário para atingir os objetivos de todos os que foram diretamente afetados não pode ocorrer através de participação unilateral. O mais restaurativo dos processos requer a participação ativa dos três grupos.
Quando as práticas da justiça penal envolvem apenas um dos grupos de partes interessadas principais, como no caso de compensação financeira do governo às vitimas, o processo só pode ser chamado de “parcialmente restaurativo”. Quando a vítima e o transgressor participam de um processo de mediação sem a participação de suas comunidades, esse será “na maior parte restaurativo”. Apenas quando os três grupos participam ativamente, como em conferências ou círculos, pode ser dito que o processo é “totalmente restaurativo”.
CONCLUSÃO
Crimes causam danos a pessoas e relacionamentos. A justiça requer que o dano seja reparado ao máximo. A justiça restaurativa não é feita porque é merecida e sim porque é necessária. A justiça restaurativa é conseguida idealmente através de um processo cooperativo que envolve todas as partes interessadas principais na determinação da melhor solução para reparar o dano causado pela transgressão.
A teoria conceptual apresentada possibilita uma resposta abrangente que explica o como, o por quê e o quem do paradigma da justiça restaurativa. A Janela de Disciplina Social explica como o conflito pode se transformar em cooperação. A Estrutura de Papéis das Partes Interessadas Principais mostra que para reparar os danos aos sentimentos e relações requer o fortalecimento das partes interessadas principais, afetadas de forma mais direta. A Tipologia das Praticas Restaurativas explica porque a participação da vítima, do transgressor e das comunidades é necessária à reparação do dano causado pelo ato criminoso.
Um sistema de justiça penal que simplesmente pune os transgressores e desconsidera as vítimas não leva em consideração as necessidades emocionais e sociais daqueles afetados por um crime. Em um mundo onde as pessoas sentem-se cada vez mais alienadas, a justiça restaurativa procura restaurar sentimentos e relacionamentos positivos. O sistema de justiça restaurativa tem como objetivo não apenas reduzir a criminalidade, mas também o impacto dos crimes sobre os cidadãos. A capacidade da justiça restaurativa de preencher essas necessidades emocionais e de relacionamento é o ponto chave para a obtenção e manutenção de uma sociedade civil saudável.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
McCold, P. (1996). Restorative justice and the role of community. In B. Galaway & J. Hudson (Eds.), Restorative Justice: International Perspectives (pp. 85-102). Monsey, NY: Criminal Justice Press.
McCold, P. (2000). Toward a mid-range theory of restorative criminal justice: A reply to the Maximalist model. Contemporary Justice Review, 3(4), 357-414.
McCold, P., & Wachtel, T. (2002). Restorative justice theory validation. In E. Weitekamp and H-J. Kerner (Eds.), Restorative Justice: Theoretical Foundations (pp. 110-142). Devon, UK: Willan Publishing.
Wachtel, T. (1997). Real Justice: How to Revolutionize our Response to Wrongdoing. Pipersville, PA: Piper’s Press.
Wachtel. T. (2000). Restorative practices with high-risk youth. In G. Burford & J. Hudson (Eds.). Family Group Conferencing: New Directions in Community Centered Child & Family Practice (pp. 86-92). Hawthorne, NY: Aldine de Gruyter.
Wachtel, T., & McCold, P. (2000). Restorative justice in everyday life. In J. Braithwaite and H. Strang (Eds.), Restorative Justice in Civil Society (pp. 117-125). New York: Cambridge University Press.